Recorrências e afagos

Dia 18 – Ainda na bonita província de Santa Fé, pisei chãos na casa da Paola, psicóloga e mãe da Giustine, na pequena cidade de Santo Tomé. Conheci ela no meu primeiro hostel da viagem, no pueblo de Punta del Diablo, no Uruguai. Me convidou para uma estadia, caso eu passasse por sua cidade. Primeiramente não encontrei a Paola em casa. Fui às compras dos mantimentos para a noite.

Nos corredores do mercado mais próximo, enquanto me abastecia com bananas e ovos, surgiram mãe e filha no mesmo recinto. Fomos juntos à casa. De pronto, a Paola jogou as frutas no liquidificador. Em meio aos arrumes da bagagem, a amável Giusti me proveu com um lindo regalo. Sabendo de minha chegada, tratou de me fazer um diário. 

Milanesas, vinho e Paulo Freire

Jantamos saborosas milanesas, purê de batatas e vinho. Na TV, um programa de entrevistas argentino, com o escritor Dolina. Na casa ao lado, a adorável Dani, professora de artes e motociclista, com sua estante forrada de ficções, filosofias e Paulo Freire. Nesses entremeios, uma cerveja bem gelada, que o sol estava expansivo por estes mapas.

No outro dia, com indicações da Paola, fui para Santa Fé, capital, a poucos quilômetros de Santo Tomé. Dentre recorrências, visitei os aposentos do colégio Imaculada Conceição, local onde o Papa Francisco lecionou aulas de psicologia e literatura nos primórdios dos anos 1960. De volta à hospedagem, demos todos de cara com a triste notícia da tragédia em Brumadinho, estampada no noticiário argentino. Nossas condolências prestadas – também ao não esquecimento.

Por toda a Argentina, e não diferente em Santa Fé, o clássico proceder de praças, muito semelhantes em sua estrutura. Ou seja, com um palácio de governo, uma chefatura de polícia, uma igreja e um banco nacional circulando os amparados verdes. Estes, que por si, rodeiam também um comumente monumento no centro, geralmente de algum general ou ente histórico da cidade ou país. Incríveis construções, sob arquitetura rica em detalhes e sensibilidade.

É contigo mesmo, forasteiro

Há um túnel subfluvial através do Rio Paraná, que conecta as províncias de Santa Fé e Entre Ríos, com mais de 2 km de extensão. Sob o rio, emergi na cidade de Paraná – outra capital de estado -, costeada pelo poderoso rio de mesmo nome. Meu primeiro banho nestas águas. Na areia, minha primeira entrevista fora de solo brasileiro.

A Rádio Rock & Pop 94.5 me abordou e logo viu forasteiro, prato cheio para a audiência. Tive a oportunidade, através de um arranhado portunhol, compartilhar estas páginas que vos escrevo.

Um sol de torrar os miolos, diria Chico Buarque. De regresso, ainda passei na oficina para verificações. A família administrativa disse adorar a cidade de Torres, no litoral norte gaúcho.

Sob um céu enluarado

Nesta mesma noite, nos preparamos para ir de ônibus até a capital – no meu caso, novamente. No caminho até o ponto, rompeu-se o salto da Paola e ela voltou para trocar de calçados. Fui adiante com Giusti até um local propício para providenciarmos as passagens.

Estabelecidos, embarcamos no ônibus para Santa fé. Caminhamos sobre a Costanera, às beiras do Rio Paraná, vimos as cores cambiantes da ponte, encontramos com amigos da Paola e lanchamos empanadas de carne com azeitonas, feitas por ela.

Entre abraços de carinho e ternura da pequena Giusti, chegamos a mirar a lua com telescópio, no centro espacial de Santa Fé. Após longas caminhadas pelo calçadão lotado de famílias munidas de mates e piqueniques variados, embarcamos de volta, já depois da meia-noite. A Giusti se estendeu no banco do coletivo, cansada.

As magias da pequena “Santoto”

Nos intervalos de inteligências e abraços voluntariosos, a Giusti ainda vinha praticando classes de bateria. E demonstrou talento essa guria. A mamá Paola ainda se detinha dona de uma feira de livros usados, de uma casa que mais parecia um parquinho de diversões, carregada de brinquedos, livros e cores. Muito agradeci pelo (intruso) açúcar no mate, à batida de banana e da riqueza instantânea de dupla formada com sua menina-anjo.

Era chegada a hora de partir. Mas não sem antes sorver mais umas cuias argentinas, sacar uma água bem gelada da geladeira e receber mais abraços apertados e amorosos da mocinha. E também da Mara, vizinha mais miúda de mãe e filha.

Ventos revoltosos e nuvens cinzentas trataram de me forçar paragem pelo povoado de Santoto – carinhoso apelido que os moradores se referem à cidadezinha. Houve ensaio de chuvas e ameaços de tempestade. Porém, minhas ganas de chão foram mais agudas. Os escaldantes caminhos das nordestinas rotas argentinas me esperavam. Abastecido de carinho, segui adiante, queimando e renovando esse humano e renovável combustível, sempre à iminência de uma nova ancoragem.