Rio Paraná, anjos e hotéis

Dias 19 e 20 – Após aguardar os ventos uivantes passarem aos gritos pela pequena Santoto, despedi-me mais uma vez das gurias e fugi da chuva, pilotando até La Paz, cidadezinha da província de Entre Ríos. Meu primeiro hotel da viagem. Em certas cidades, as opções de hostels são poucas ou até mesmo inexistentes. O preço, justo.

Clemências ao itinerante, desertos asfálticos

O receptor, indignado com as mazelas políticas na Argentina. Trocamos informações sobre o que ocorre nos labirínticos bastidores do Brasil, e, munidos de desapontamentos mútuos, armei mochila em direção à Mercedes. Antes disso, mais admirações ao interminável Rio Paraná, meu companheiro frequente nessa buena empreitada e ducha constante às poeiras do olhar.

No meio do caminho para Mercedes, uma abelha deu sua vida para marcar minha passagem por seu lar. Uma ferroada no rosto. Um tipo de clemência, um pedido de socorro à espécie. Agora sou seu porta-voz: “salvem-nos!”. Parei e saquei o ferrão. Com as frestas bem fechadas, parti com essa melancolia que a mensagem da abelha, zunida para mim, me evidenciava.

Percorri estradões desérticos, desses que paramos em meio ao asfalto quente e temos todo tempo do mundo para registrar. Estacionei em um corredor improvisado do hotel, meu segundo do circuito. Mercedes está localizada bem no centro da província de Corrientes, e tem em suas ruas a fisionomia do interior: gentes escoradas nas calçadas, tomando mate, olhares indiscretos e meigos ao forasteiro que passa, construções em ruínas, veículos antepassados. Bebido o café da manhã com pães adocicados e manteiga, era hora de me dirigir à Corrientes, capital, quase na divisa com o Paraguai.

Resgates angelicais, brasas solares

Numa parada em um posto para abastecer o estômago e resfriar a alma, um cidadão me alertou, apontando para baixo. O pneu da moto estava cambaleante, murcho, desanimado a insistir caminhos com tal sol jogando brasas. Domingo, dia de sonos profundos na vila de San Roque, a meio caminho do meu destino.

Sentei nas escadas de acesso da lanchonete e mastiguei possíveis soluções nesse aparato de impossibilidades que o dia oferecia. Entre incertezas, apareu o Alexis, meu quase chará. Em “dois toques”, me disse para levar a moto até seu caminhão, estacionado na estrada de terra ao lado do posto. Da cabine, desenrolou um compressor de ar (o posto não possuía). Tentamos um spray vedante que eu tinha no baú, não deu certo. Logo juntei minhas ferramentas às dele, pois teríamos de tirar a roda e levar para conserto.

O Alexis constatou: “câmara rompida, pouco ar e muito calor”. Ligou para seu quase sogro. Apoiamos a moto em um balde. Instantes depois, o Anival atracou seu Voyage e, todos juntos, percorremos a cidade em busca de lojas que pudessem nos atender. Bate aqui, bate ali, nada. Para lá e para cá. Voltamos à uma das primeiras lojas, insistimos muito e eis que apareceu a Antonia, recém “siestada”, disposta a abrir as portas da ‘El Puro RPM’ e vender uma câmara para nós.

“Essa não vendo, tem muita história. Criei meus filhos com ela”

Seu Anival nos levou para a sua casa, onde nos fundos mantém uma oficina de soldas e afins. Ele e o Alexis retiraram o pneu da roda, colocaram a câmara nova e com a velha fizeram camada por cima. “Esse aqui não fura mais”.

No pátio, uma caminhonete Peugeot 1970, com o seu Anival há mais de 30 anos. Motor restaurado, entrada de ar no teto e muita história para contar. “Essa não tem valor, tá toda nova. Meus filhos cresceram com ela”.

Voltamos ao posto. O Alexis montou tudo novamente, com destreza de quem já foi mecânico de motos em Buenos Aires. Ajustou a corrente, o bico de ar do pneu e inflou. Ainda buscava tempo para livrar-se dos suores que a tempestade de sol nos mandava.

Tempo de arco-íris, hora de voar

Seu Anival olhou bem nos meus olhos e disse para sempre voltar, pousar na sua casa, recorrer sua empatia. Partiu deixando rastros de ensinos, os quais captei em meio à poeira solar e guardei em algum lugar refrescado do meu coração. Não tem celular, só o encontra quem estiver em sintonia com as frequências celestiais.

Assim também o meu chapa, Alexis, esbanjador de toda humildade que os caminhos mais intensos têm para oferecer. Repetidas vezes me dizia: “vamos resolver, fica tranquilo, que logo tu chega em Corrientes. Vamos resolver”. Cerca de cinco horas de entrega, dedicação, incentivo, riso sincero e muita transferência de generosidade para a conta da reflexão.

No retorno à estrada, agigantado de motivações, para baixar temperaturas, fui coroado com uma pancada grossa de água no lombo, descoberto de capas. Passadas as nuvens, um presente para poucos: arco de cores, e, no centro, árvore repleta de aves brancas. A Argentina pune, mas também sabe acarinhar.

“Pois seja o que vier, venha o que vier. Qualquer dia, amigo, eu volto a te encontrar”. (Milton Nascimento)