Dia 4

I

Não vi pumas nem qualquer outra espécie de gato selvagem. No entanto, vi o Beethoven. Acarinhei e fui acarinhado pelo jovem e corpulento cão pastor, de espessa pelagem branca com manchas cor caramelo espalhadas pelo dorso e pernas e olhos castanhos claros tenazes, tutoreado pelo administrador da propriedade. Capaz de captar e decifrar as minúcias que se insinuam na cabeçola humana e traduzir o cerne potencialmente vulnerável de uma pessoa.

14h52. Após almoçar a comida requentada do jantar e lavar a bicicleta de toda lama incrustada do dia anterior, não havia mais como esperar a chuva estiar. Vesti a roupa impermeável e parti da cabana. No passo que queria evitar a noite, não estava disposto a pagar por mais uma diária e, mais que isso: a ansiedade por cumprir com o sonho de chegar à praia pedalando, era grande. Afinal, somente 50 km me separavam do mar.

Percorri o gramado frontal das cabanas e me dirigi ao portão de saída. Beethoven estava disposto a me acompanhar, disso não havia dúvidas. Ao subir na bicicleta e ir em direção à ponte de concreto que dá para a estrada de terra, já temia que a sua passagem estivesse ainda mais coberta pela água do rio, já que, além da chuva em tempo real, havia chovido a noite inteira.

Cada giro nos pedais era transformado em motivação ao trote de meu companheiro. Ao perceber que o atento cachorro me acompanhava lado a lado, com gosto, tratei de incentivá-lo ainda mais: — vamos, Beethoven – dizia. — Vem, cara, tu é meu companheiro nessa empreitada. Aquilo claramente soava como bela brincadeira para ele, jovem e vigoroso, imbatível ao clima e disciplinado canídeo pastor que é.

Ao chegar à passagem, meus anseios se materializaram. A água do rio Maquiné traspassava a ponte, correndo livre como se ali não houvesse uma estrutura para tráfego de veículos e pedestres. De sua silhueta, apenas o tom levemente mais escuro completamente encoberto pela água. Não tinha alternativa, a luz do dia se apressava no matiz das montanhas e pegar noite não era uma opção plausível. Contudo, o temor de atravessar o rio turvo e caudaloso fazia brotar um medo instintivo através de meus poros.

O suficiente para Beethoven fazer a leitura necessária da situação. Ao detectar minhas apreensões, tratou logo de amenizar a crescente tensão que pulsava em minhas veias. Ele ensaiou os primeiros passos sobre a ponte e virou-se para mim. Com seu modo de me olhar e seu gestual de corpo, parecia comunicar sua empatia, de maneira que se colocou como guia.

Aceitei sua carinhosa oferta e, então, destravei de minha apatia. Ergui a bicicleta com o braço e o segui, pé sobre pé, tateando a superfície encoberta da ponte. Conforme avançávamos, ele dava suaves olhadelas para saber minha posição. Com toda a resiliência e trato de um bom líder, me levou pelas ‘patas’ até o outro lado do rio.

Na metade da travessia, ousei olhar para o lado direito, contra a correnteza e a largura das águas marrons vindo em nossa direção. Poucas – talvez nenhuma outra vez – senti tamanho medo. Meu cérebro entrou em estado de alerta, um tipo de pavor primitivo, calafrios indiscriminados percorreram cada centímetro de meu corpo.

Suando frio, ao colocarmos pés e patas em terra firme, agradeci ao cachorro, emocionado com sua generosidade, espantado com sua inteligência. Não é à toa que sua raça, Border Collie, seja considerada a mais inteligente entre os cães (o equivalente a uma criança de 2 anos de idade). Não demorei a apertar o passo. Mas, ao olhar para trás, Beethoven continuava seguindo meu rastro com a mesma determinação. Parei e ordenei que voltasse para casa. Amuado, porém compreendido, deu meia volta e tratou de regressar à sua morada, a cerca de 1 km do outro lado do rio.

II

Com o sangue renovado e oxigenado pelas singelezas da natureza, o medo fora escanteado e tratei de deslumbrar o rumo em direção à praia, com as pernas e os pés encharcados. À minha esquerda, as desbravadas águas do Maquiné. À direita, os sopés de montanhas ao fundo de casas antigas e pacatas propriedades rurais. Morros e colinas pontiagudas, arborizados e enquadrados por um firmamento azul-celeste. Fontes de inúmeros córregos que desciam de pequenos vales e afluíam até o rio, dando ainda mais corpo à sua massa de águas.

Pedalar sobre tais trechos remetia a perambular em outros tempos. Territórios de nostalgia, perpétua pintura impressionista. Cada poça de água e lama desviada pelo ziguezague dos pneus, um formoso jogo de reflexos caleidoscópicos ciclísticos. Viajar de bicicleta podia mesmo significar essa interação mais profunda e filosófica com o meio. Poesia instantânea, breve e variável retrato das paisagens do mundo.

Percorrer este cenário de sonho promovia tal pisar de nuvens. Nuvens leves e fragmentadas, já que a chuva havia cessado. Entretanto, como num beliscão qualquer, fui despertado para uma realidade a qual não estava provido: uma leve vertigem passou a esmorecer meu equilíbrio. Assustado, procurei a primeira casa habitada e entrei sem sobreaviso. No mapa, eram apenas os primeiros 15 quilômetros de estrada.

Da varanda, surgiu a dona Darci, no alto da lucidez de seus bem vividos 86 anos. Expliquei que não estava me sentindo bem e precisava de companhia. Prontamente me entendeu e ofereceu acolhida. Logo chegou seu filho, morador da casa ao lado. Também um quentinho chá de camomila, da cozinha da simpática senhora.

— Deve ser a ansiedade de chegar à praia – disse eu, tentando encontrar um bom argumento, tanto para mim, quanto para eles.

Ouvi histórias da família de dona Darci, da passarada que cantarola o verde todo que rodeia suas casas e das instruções sobre o caminho até o litoral. De ânimos postos em normalidade, nos despedimos e segui meu rumo. O dia prometia noite.

*

Desde que saí de Caxias, a potente canção intitulada Tierra (Terra), do aclamado cantor pelotense, Vitor Ramil, arranjada, traduzida e interpretada do sonido de mesmo nome do cantor espanhol Xoel Lopez, se fez meu trilho musical e potência poética por todo o caminho por sobre a bicicleta. Um mantra poderoso e incentivador de lágrimas. Foram inúmeras as vezes que me peguei recitando seus versos em cochicho esbaforido, e me vertendo em comovida contemplação.

“Eu sonhava a cada dia em alcançar a praia
Agora estou tão perto, quase já me sinto lá…”.

O trecho final através da RS-407 seria minha conexão com o mar. Não demorou muito para a noite cair e fazer da estrada potencialmente movimentada, meu martírio. Estava sentindo as mesmas inaptidões que senti quando tive de parar na casa de dona Darci, porém me atrevi a continuar a pedalada, pois estava muito próximo de atingir o pórtico de acesso à cidade de Xangri-lá.

Com os ânimos acuados e as sensações de vertigem agarradas às costas, desci da bicicleta e acenei para alguns carros que acessavam a cidade por aquela via, na tentativa de pedir uma carona até um pronto-atendimento mais próximo. Sem resposta de nenhum motorista, atravessei a pista e entrei na primeira casa que vi, novamente.

O Douglas e sua família até se assustaram ao ver o estranho adentrando o portão, que estava aberto, sem avisar. Rapidamente expliquei a situação. Ao dizer que estava viajando desde Caxias do Sul de bicicleta, ficaram todos surpresos. Na mesma hora, fui recepcionado e tratado como um amigo próximo. Não demorei a protestar que precisava de atendimento médico. No ato, o Douglas parou tudo o que estava fazendo e tirou o carro da garagem para me acudir.

III

Entre soros e vitaminas mal interpretados na veia, sem notar melhora nas vertigens e sensações de desequilíbrio, o corpo frágil e descontrolado, a respiração ofegante e uma ansiedade atípica, tranquei a viagem, embalei a bicicleta na debutante oficina do Jean e regressei à casa, de ônibus. Não demorei a constatar que sofria de vertigem fóbica, situação em que o cérebro encontra-se em estado de alerta constante, hipersensível.

Pousei duas noites, sob angústias, na cidade vizinha de Capão da Canoa. A poucos quilômetros do oceano, reuni todas as forças que detinha e, a trancos e barrancos, desmontados homem e bicicleta, atraquei, a pé, de um sonho intenso nas areias de ventania e céu cinza-carrancudo de Capão. “O mar me faz provar um gosto de final, o ar promete terra seca ao viajante exausto…”.

*

Já em Caxias, logo, o saldo: as duas travessias de ponte desencadearam uma crise de ansiedade, algo que pude constatar ao visitar um especialista, alguns dias após retornar para casa. Não conseguia sequer subir em minha moto, tampouco caminhar poucos metros sem que me sentisse em estado de pânico.

— Doutor, foi somente por conta da travessia ou esse gatilho de medo trouxe outras situações – mal resolvidas – à tona?

Era fato que tal intimidante chave fora capaz de destrancar um baú inteiro de incertezas reprimidas. Coincidentemente, o médico era tutor de um Border Collie e me explicou que o cachorro me acompanharia pela estrada até o momento em que sentisse que eu estava seguro e não precisasse mais dele. A natureza é mesmo insondável. Enquanto faço o tratamento para retomar à normalidade, acerto comigo mesmo que voltarei a remexer, muito em breve, no Projeto Tapejara.

“Felicidade não é uma estação para se chegar, mas um modo de se viajar. Assim sendo, a felicidade é uma bicicleta”. (do livro “O Ciclista Mascarado”, do músico e escritor Neil Peart).

Cronograma do dia: Maquiné/RS – Capão da Canoa/RS – 49,54 km pedalados – 99 m acumulados de ganho de elevação

Números finais: Caxias do Sul/RS – Capão da Canoa/RS – 220,88 km pedalados – 3.139 m acumulados de ganho de elevação