Dia 3

I

Entre agosto de 2022 e abril de 2023, tive a oportunidade de trabalhar como recenseador do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), junto a um verdadeiro exército de mulheres e homens a apurar as gentes e seus modos de vida em cada canto desse país. À ocasião, escolhi operar na zona rural de Caxias do Sul, já que o interior abriga não só a brandura do povo campestre, mas sua vasta natureza e multiplicidade de veredas.

Ao percorrer estradas de terra crivadas de pedras soltas, verdadeiras espécies de trilhas rústicas pelas escarpas mais distantes dos rincões da cidade para, muitas vezes, contatar uma ou duas famílias destes fundões, isoladas da urbanidade, sentia meu dever a se cumprir da mais bela maneira. Num ousado paralelo ao que diz o Ministro dos Direitos Humanos, Sílvio Almeida: “vocês existem e são valiosos para mim” (guardadas todas as proporções geográficas e econômicas de tais pessoas e regiões mencionadas).

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Desde que li o poderoso livro do cicloaventureiro, instrutor de trekking e bikepacking, documentarista e escritor paulista Guilherme Cavallari, “Transpatagônia – Pumas Não Comem Ciclistas”, há alguns anos, onde ele descreve que “o bosque e o clima não me ameaçavam. Mesmo os pumas – que eu não via, mas que de certo me observavam a distância – não eram ameaçadores de fato. Eles tinham tanto medo de mim quanto eu deles”, meus radares selvagens se despertaram para tal criatura mística.

E pumas são nativos destas terras americanas todas, e na serra gaúcha não é diferente: o segundo maior felino das Américas habita nestes espaços. A todo lugar mais remoto que passei a frequentar para entrevistar os moradores para o Censo, perguntava se ali teria pumas ou se já haviam visto algum. Dias antes de partir, li uma reportagem com imagens captadas de um puma circulando a área da Floresta Nacional de São Francisco de Paula, algo que eriçou ainda mais minhas curiosidades. Meses antes, um destes gatos gigantes foi encontrado na área urbana, no município de Vacaria.

— Os leõezinhos? – respondiam-me. – Já que os bichanos também são conhecidos por estas bandas por leão-baio.

Onça-parda e leão-da-montanha também dão nome à fera, assim como o próprio dito puma, mais conhecido em terras estrangeiras (principalmente na Patagônia).

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12h01. Uma vez em direção à Maquiné, logo após deixar São Chico, fui indicado pelo Maps do Google a atalhar um pequeno trecho de rodovia. Saí da asfaltada e movimentada RS-020 e entrei numa estrada de serviço. Lama movediça seria uma ótima definição. Tive de parar algumas vezes e tirar o barro acumulado nas engrenagens da bicicleta com as mãos, isso quando o acúmulo não bloqueava o quadro e travava a roda traseira. 4 km que valeram por muitas lamúrias e aprendizados sobre como evoluir em minha navegação.

Um estradão de terra úmida e empoçada pela chuvarada da noite anterior fez da RS-484 minha saga até chegar à Floresta Nacional de São Chico. Na passagem, outra importante etnia indígena fincada em palanques de sua “Retomada Xokleng”, bem em frente à Flona. Área esta que o grupo reivindica como terra ancestral e de lá não tira o pé. Assino embaixo. Também verifico, poucos metros entrando à direita, que da guarita do parque quem não tira o pé é o seu João, há mais de 16 anos como bom e velho zelador do ICMBio (Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade).

— O senhor já viu algum puma aqui pela floresta? – perguntei a ele.

— Já, muitas vezes – disse, para meu espanto e admiração.

— Queria tanto ver um – falei.

— E é possível, vem gente do Brasil e do mundo inteiro fazer estudos – relatou. — Biólogos, engenheiros florestais, professores e estudantes dos mais diversos níveis.

Para tentar a possibilidade de ficar cara a cara com o místico selvagem das florestas, é só agendar no site do governo federal. Para tal feito, basta estar munido da mais destemida capa de bravura e suprimentos heroísticos. Mentira, Cavallari já desmentiu tal proceder. Basta respeitar e será respeitado. Bom, ao menos assim se espera.

II

Passei o resto do caminho esperando avistar algum majestoso felino pelas beiras da estrada, mas as margens da floresta ficaram para trás e num sem fim de hectares cancela adentro. Adiante, somente planaltos e pequenas colinas verdes, crivadas de gado e uivar de ventos. Pouquíssimas moradias, quase um deserto de morros esmeralda, planuras que se davam ao chegar próximo à esplendorosa Serra do Umbu, última cadeia de montanhas até o litoral.

No cume, são quase 1000 m de altitude. Lá de cima, escarpas curvilíneas, mansamente delineadas por topos arredondados, vez ou outra por rochas terrosas inacessíveis. A estrada como mirador, assim que instantes antes de começar os trabalhos de declive, é possível avistar, à esquerda, uma volumosa cascata celestial, despencando penhasco abaixo, numa visão mítica, quase uma miragem. Os perais são imensos, quiçá certa vertigem ao olhar lá em baixo, profundo vale de troncos centenários e pedras do tamanho de um carro. Encostas cobertas por incontáveis milhares de árvores.

São cerca de 10 km de enlouquecidos 900 m verticais, descidos até o chão do mundo, planície da Terra. Serpenteada por curvas em altíssimo grau, cotovelos que costeiam a montanha e deslizam como um escorregador de terra e cascalho. Em algumas margens, pode-se avistar possíveis madeireiras obtusas. Em outras, quedas d’águas à revelia do olhar.

Quanto mais se despenca da montanha, mais alta ela fica à sua frente. E tal imponência assusta, descreve nossa pequenez, nos induz à reflexão. Quanto mais enfiado no vale e próximo do caudaloso rio Maquiné, mais empurrado para o ventre da terra eu era. Muito próximo da pousada reservada, uma cabana rústica montada à margem do rio, pontes inundadas pela fartura de águas que atingia o Rio Grande do Sul. Cerros impondo sua majestade paisagem acima.

Barra do Ouro é um distrito rural e longínquo do município litorâneo de Maquiné. Seus acessos se dão basicamente por estradas de terra e brita, seja para quem desce ou para quem sobe as serrarias que o circundam. Após uma queda vertiginosa dos últimos cumes serranos, meu destino estava à esquerda, bastava cruzar a ponte e providenciar um banho quente e reconfortante, preparar a janta, acarinhar e ser acarinhado pelo Border Collie Beethoven, tutoreado pelo administrador da propriedade. Enfim, sonhar. Contudo, não foi tão simples assim.

A ponte de concreto, construída no nível da estrada, ou seja, das margens do rio, é muito baixa e sem barreiras de proteção – qualquer tipo de suporte que pudesse auxiliar em possíveis necessidades ou incidentes. As águas marrons e de considerável correnteza estavam disparando livres por cima da estrutura. Quando vi, tive receio em atravessar. Não sei nadar – de nada adiantaria – e, por uma razão ou outra, tenho meus temores com água. Sobretudo com grandes quantidades de água. Dei meia volta e pedi ao Rudimar, agricultor da outra margem, se teria outra opção para passar ao outro lado.

— Tem a pinguela, logo ali – apontou. — Bem ali, só ir costeando e tu vê.

Pinguelas são pontes – neste caso rústica -, para travessia de pedestres. Embasada por arames e madeira velha, sofria um desajuste em que fazia com que sua área de passagem estivesse consideravelmente pendida para o lado esquerdo. Subi os degraus velhos e retorcidos, apontei a bicicleta e calquei o pé direito na esteira de passagem para testar sua estabilidade. Sem fazer muita força, balançou mais que palanque em banhado. Obviamente, dei meia volta.

Não haveria outro jeito de atracar na pousada senão cruzar a ponte com água correndo por cima – havia pontos que não dava para ver o fundo. Mais uma vez, incorri ao Rudimar. Gentil que é, munido de botas, me guiou até o ponto em que criei o mínimo de coragem e segui tateando com minhas próprias forças. Encharcado das pernas para baixo, finalmente cheguei ao destino.

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O Cleison, ao me ver, ficou aliviado, pois já eram quase seis horas e a noite estava caindo como as folhas dos eucaliptos detrás da morada. Ele havia me enviado mensagens avisando dos empecilhos com a vazão de água da região e as possibilidades de travessia para a pousada. Percorri praticamente o caminho todo sem cobertura de sinal de internet, logo não não pude receber seus recados.

Menos mal que estava são e salvo. Melhor ainda que estava prestes a jantar um manjar de meio pacote de massa que havia trazido na bolsa de selim; tomate, cebola, ovos caipiras, temperos e suco de saquinho que o Cleison prontamente providenciou de sua própria despensa, já que a tenda mais próxima não era tão próxima assim.

Diriam os mais velhos que “nem tudo são flores”. De fato, pois nesse meio tempo de banho, janta e descanso, fui abatido por palpitações e me senti assustado. As águas turbulentas que rumavam lá fora, a poucos metros da cabana, não traziam boas notícias, ao menos para mim.

“Fiquei pensando que um viajante de bicicleta era uma linha que costurava o planeta, levando o mundo para as pessoas e recebendo de presente esse mesmo mundo de volta. Se aquela pequena gota em movimento no oceano da vida pudesse deixar algo de bom para alguém, já seria um sentido e tanto para se estar vivo”. (do livro “Homem Livre – Ao Redor do Mundo Sobre uma Bicicleta”, do cicloaviajante, documentarista e escritor Danilo Perrotti Machado).

Cronograma do dia: São Francisco de Paula/RS – Maquiné/RS – 50,49 km pedalados – 467 m acumulados de ganho de elevação