O fogo ancestral

Cormac McCarthy é destes escritores que te captam antes mesmo de começar a lê-lo. E ao iniciar a leitura do texto do homem, o texto cru, coeso, áspero e dilacerante do homem, de fato somos transportados ao terreno vigoroso, conflitante e desafiador que o escritor oferece. Há de se ter estômago em dia para remoer as arduras deste caminho de letras. No fim, é só lágrima temperada de sal.

Sonhos que não parecem sonhos

No dia seguinte à primeira pegada do tomo, ao acordar e ler as notícias decorrentes, deparo-me com a seguinte manchete: “morre Cormac…”. Havia anos eu esperava e ansiava por sua arte. A tal “arte que assusta e ao mesmo tempo inspira”, dita esta cravada no verso de seu livro, que, aliás, é a tal brochura da vez: ‘A Estrada’. Algo que coincide nas veias de quem é leitor e, mais ainda, de quem já admirava a obra através das memórias obtidas da adaptação fílmica, sob feitos do grande Viggo Mortensen. Adendo: poderoso ódio à procrastinação.

De forma que deixar passar o tempo sob vontades e influências para apreciar a obra escrita pelo norte-americano, e, então, vir a dar o pontapé inicial justo poucas horas antes de sua morte. Cormac é destes que almejamos conhecer em vida. Não será nesta. Sua obra, sim, habitará fundo na memória, como um velho diário de um pretenso escritor em sua jornada absoluta.

A poesia reside na resiliência

De teor pós-apocalíptico, o autor dá as cartas a uma trama desoladora. O mundo está decrépito, em ruínas, sob cinzas, amorfo e infértil. Pouquíssimos humanos sobreviveram à catástrofe. Pai e filho andejam aos cambalachos, esquálidos. Todo dia é uma batalha para encontrar comida e se proteger do frio atroz. Dos “outros” – infelizes de todo tipo, assassinos, peregrinos anônimos, canibais.

Pai e filho vivem na perspectiva do fogo. Do manejo e mantimento do calor. Do estalar e crepitar da madeira retorcida que encontram às escuridões, munidos de suas máscaras de pano contra o ar impuro, tóxico, baixo à rara luz que o mundo tem para oferecer – o sol é só uma lembrança. Queimadas de pesadelo, vento de desastre, tal clima hostil é paisagem de inserção. As lágrimas são consolo.

“O menino fez que sim. Então partiram sobre o asfalto sob a luz cinza-chumbo, caminhando vagarosamente por entre as cinzas, cada um o mundo inteiro do outro”.

Boas brasas, velho choro contido

Tão logo pai e filho alimentam o fogo da esperança, o blogueiro alimenta o fogão à lenha do frio que se instala na boca do inverno serrano de terras gaúchas (choro contido toma forma conforme o coração esquenta no virar de páginas). Vencedor do prêmio Pulitzer de 2007, A Estrada é considerada a obra-prima do velho e agora saudoso escritor. Ao futuro leitor – e espectador do filme -, minhas ganas de que o faça no tamanho de sua pressa pela vida. Afinal, lenha queimada vira cinza, e compassos passados não dão retorno.

“A escuridão da lua invisível. As noites agora apenas ligeiramente menos negras. Durante o dia o sol banido circunda a terra como uma mãe chorosa com uma lamparina”.

Nota: 5/5