A liberdade como modelo
Os pais de Misha se refugiam na Bélgica. De casa em casa, tentam despistar os alemães e manter sua família segura. Misha tem sete anos e, apesar da guerra, é audaz e curiosa, de afiados humores e instigada a intimar os perseguidores de sua família.
“Se alguém, além de seu pai e eu, buscá-la na escola e disser ‘amor da minha vida’, vá com essa pessoa”.
Dado dia, Misha aguarda seus pais à saída do colégio. Ninguém aparece. Ali próximo, confronta-se com caminhões a recolher gentes. Sozinha, é abordada por alguém: “amor da minha vida…”.
Terrena acolhida, celeste provisão
Contudo, Misha é assegurada de que ficará a salvo junto de uma família. Cedo, debaixo de lágrimas de saudades dos pais, passa a conferir tarefas caseiras, além de suprir a nova família com os produtos da fazenda do velho Ernest, situada às redondezas.
Não contente com o tratamento das pessoas com quem convive, rapidamente Misha passa a atrair-se pela lida do campo. Lá, porém, as suspeitas policiais também batem à porta.
Com a roupa do corpo e uma pequena bolsa, além de uma bússola, presenteada por Ernest, Misha passa a perambular caminhos. Ao saber de rumores de que seus pais foram levados para o leste, fixa-se na sua única esperança: os ponteiros do pequeno instrumento.
Miúda estatura, enorme coração
A andar pelas matas rumando ao leste, Misha tem de fugir de soldados e cães, driblar a fome, absorver as chuvas e dormir às relvas em pleno inverno europeu. Tão somente ela detém a companhia de sua boneca, com quem tem as primeiras conversações em solidão e desprovimento.
É possível uma menina criança manter a vida em tais condições? Misha tem todas as provas de tais feitos. Acusada de cigana e ladra ao abastecer a fome em cozinhas alheias, tem de usar mão de sua faca para se esquivar das agressões. Ainda assim, não o suficiente para despistar uma pedra que lhe acertam pelas costas. Cambaleante, clama por sua mãe, sumida sabe-se lá em que parte do mapa indisível.
Escorada ao relento, a menina é acordada pelo rastreio de um canídeo. Assim que o percebe, Misha oferece comida. Logo ao primeiro uivo, ela desvenda a companhia de uma loba.
Pranto abaixo, uivo acima
A inocência de criança atrai uivos de instinto benigno, compartir de amparo e amizade. Ademais, comprovada parceria, o bicho divide sua própria caça com Misha. Ainda assim, há um momento em que menina e animal distinguem rumos.
Léguas adiante, Misha reencontra a loba, agora encarregada de uma ninhada, da qual a menina embrenha-se em ternuna e afagos. Juntos, menina e lobos empreendem busca por comida, capturam animais de propriedades e atraem a atenção de caçadores da região.
No entanto, através de uma emboscada, Misha ouve o disparo de tiros e movimento de gentes adversas. É mesmo a miúda guerreira a sepultar a tão almejada amizade, protetora e tesmemunha fiel de sua sobrevivência na pretendida busca por sua família humana? Por ora, é na contradição que sua própria espécie acomete, que Misha vê mantimento no mais vívido ambiente selvagem. Dor infantil carregada em pelagem animal, estipulada à vida pelo convívio com seres ‘irracionais’.
Curta em anos. Velha carga ansiã
E não é que a menina é boa de pés? Num par de anos, sua cruzada a leva à Ucrânia. Em maus bocados, é encontrada por soviéticos e acudida à casa de família, onde recebe comida e atenção. Não sem razão, de início é arisca e intocável por outros de sua espécie, mas aos poucos se deixa acolher por mãos de amparo.
Atendida e disposta, Misha decide prosseguir em sua busca solitária. Emboca-se sob um trem de carga, jogada às incertezas do porvir. A coragem é sua maior determinante, no que ultrapassa as travas do medo.
Somadas andanças, Misha empreende a jornada de sua vida. O desalento nunca fora impedimento, a falta do que comer não lhe sugara a ânsia pelo desvendar. Já tão próximo de sua casa e em incessante busca pelos paradeiros de seus pais, Misha encontra com o velho Ernest. É aí que o tom estelar retoma em seus olhos. Afinal, a maior luta de sua vida ainda não acabou.
“Meus Deus. Veio de tão longe. Uma batalhadora como você pode superar tudo”.
Nota: 4/5
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