‘Ciclista fantástico’

O paulista Guilherme Cavallari nos convoca a uma remexida na alma, uma caminhada pelos confins do coração e um verdadeiro início de um novo parágrafo para nossas vidas. Das imersivas páginas de ‘Transpatagônia – Pumas não comem ciclistas’, o experiente aventureiro proporciona inconsoláveis comichões no corpo e nos marejados olhos de qualquer potencial andante de si mesmo. A bela e insondável Patagônia é mais que pano de fundo para uma espetacular cruzada de um solitário homem, que através de sua proeza, é fazedor de companhias ilimitadas de encanto.

Domar as ânsias, acarinhar os pumas

Propor-se milhares de quilômetros pelos variados terrenos patagônicos já não é comum. De bicicleta, sozinho e autossuficiente, menos ainda. Mas, quem acompanha o autor, sabe que o comum não acomete seus rumos. Fundador e faz-tudo da Kalapalo, editora de livros de aventura, ele percorre largas extensões de terra e oferece seu conhecimento de campo há décadas, além de dedicar-se a cursos e palestras.

Após longos anos escrevendo livros técnicos de trekking e bikepacking por inúmeras trilhas Brasil e mundo afora, em 2012 saltou para um novo propósito: fazer literatura de viagem, através de relatos vivenciados por ele mesmo. O primeiro destino? A mística Patagônia. Uma costura sem fim entre Argentina e Chile, de norte a sul e de volta ao norte outra vez, durante 6 meses e 6.000 km percorridos.

Guilherme lotara uma biblioteca exclusiva para leitura e pesquisa com livros sobre esse “rabicho torto na extremidade inferior da América do Sul” – segundo ele mesmo aborda estes terrenos austrais do planeta -, e nos sacode em seu liquidificador de emocionantes referências e potentes motivações.

Munido de suficientes suprimentos, equipamentos para a bike e completa parafernália fílmica para registrar a viagem, Cavallari desbrava chãos a partir da cidade de Bariloche, na Argentina. Daí, a aventura vira pretexto para a urgência da vida e seus aprendizados iminentes. Sendas sem direção, travessias de rios, suores e chuvas sem fim. Contudo, acolhimentos fraternais, alquimia de ânimos e vertigem de afetos saltam à bagagem.

“Apesar de ganhar a vida como um tipo de explorador contemporâneo de ambientes naturais, vivi quase todo o tempo em grandes centros urbanos. Basta alguns dias ao ar livre e voltar à metrópole me assusta. Acho difícil acreditar que o ser humano possa florescer onde não há flores”.

Cumes à vista, íngremes descidas

Com reflexões do tipo “essa viagem era uma fuga ou um gesto de busca mais consciente da minha vida?”, Guilherme vai povoando seus trechos com as ganas de um menino e a sabedoria de um menestrel. Os ocasionais encontros com nativos e turistas variados pelo caminho são uma viagem à parte, aquilo que chamo de ‘essência da coisa’ – bem como “o conhecimento da história dos lugares visitados”, diz o autor, “é como uma viagem dentro da viagem”. De historiadores locais a gauchos, de carabineros a viventes isolados nas florestas mais longínquas.

Entre arrepios do tráfego de veículos em autoestradas a intermináveis chãos de terra, Guilherme saca elucidações mais que pertinentes: “é raro encontrar um sul-americano que não sonhe em ser um norte-americano”. Porém, as justificativas logo vêm à triha: “os Estados Unidos têm enorme dívida moral e política com toda a América Latina”, comenta o autor, e prossegue, “ditaduras projetadas, lucro acima de tudo, padronização da humanidade…”.

Outro exemplo provocador e não menos oportuno, é do empresário estadunidense Douglas Tompkins, famoso “comprador” de terras patagônicas com o viés de proteção ambiental. Vastidões adquiridas a peso milionário, “insinuando sem sutilezas que quando o assunto é salvar o planeta só os muito ricos conseguem ser muito bons”, e vai além, “por outro lado, será que havia outra arma contra o poder destrutivo do capital além do próprio capital?”.

Mas e os temidos pumas, tchê? Eis um tremendo tempero que Cavallari salpica ao longo de todo o livro. Se por cuidado extremo achamos que o autor está a salvo na natureza selvagem, é aí que Guilherme polvilha adrenalina e alvoroça nossos instintos, quando o assunto são esses gatos grandes das estepes castelhanas. Seus acampamentos selvagens, além de grandes iscas para felinos, são pontos centrais diante de suas fugas da dita ‘civilização’.

“O silêncio e a estagnação geral eram quase opressivos. Mesmo caminhando com atenção e com cuidado, minha mobilidade destoava. Eu não fazia parte daquele ambiente, estava nitidamente apenas de passagem. Nada era obsoleto ou supérfluo à minha volta, nada era desnecessário, nada sobrava a não ser eu mesmo”.

Pousa Exupéry, decola uma bicicleta

Cavallari faz questão de pedalar e pisar pés ao longo de rotas de gentes pioneiras quando o assunto é Patagônia e Terra do Fogo, que vai desde Lucas Bridges, Fitz Roy e Rose Swale-Pope a Bruce Chatwin, de Giuliano Giongo, Paul Theroux e Rosa Yagán a Danka Ivanoff, e esses são só alguns poucos e importantes nomes citados na obra – exploradores, contadores de histórias, moradores locais e viajantes de tempos mais remotos e também mais atuais.

Leitor e escritor nato, Cavallari nos acolhe e presenteia com descrições mais que detalhadas e comoventes da expedição, das expressões daqueles com quem cruzou caminhos e didiviu um pedacinho da vida, das infinitas montanhas da poderosa Cordilheira dos Andes, os esfumaçantes e imponentes vulcões, dos bosques e pradarias, da fauna, da história de cada personagem importante para aquele místico trecho de mundo. Um verdadeiro ‘realismo mágico de aventura’.

É possível introduzir Guilherme e misturá-lo ao emaranhado filosófico e vivificante de autores e personagens como aquele que Viggo Mortensen dá vida em Capitão Fantástico, ou o relatado em livro e posteriormente cinematográfico Na Natureza Selvagem, de Sean Penn. Ainda, aos ares primitivos de Jack London. Obras que, às perspectivas deste que vos escreve, são do mais alto calibre no plano prático e emocional.

“Os elementos que compunham a paisagem eram tão ostensivos, grandiosos e impactantes que chegavam a ser agressivos. Lagos, geleira, rochas, bosques e picos gritavam um tipo de beleza incômoda que eu queria tatuada em minha memória”.

Mais Além: Sociologias

Um importante aspecto que o livro nos traz é a maneira de como o autor lida com o seu tempo. Guilherme destaca o dilema das profissões, sempre voltadas ao mantimento das cidades ao invés da relização humana, e arremata com o desconforto de que “romper com esse padrão soava como tornar-se um náufrago à deriva”. Nota-se uma relação atraente e necessária entre o que faz o autor de Transpatagônia e o que diz o sociólogo italiano Domenico De Masi, especialista quando o assunto é trabalho, qualidade de vida e realização.

No conceituado livro ‘O ócio criativo’, de sua autoria, ele retrata como serão os novos rumos em relação à ‘labuta’ nossa de cada dia em nosso exato momento da existência, o século XXI: “junto com os indivíduos, é necessário que também as cidades e suas instituições se adequem, aparelhando-se em função de uma vida coletiva na qual predomina o lazer. É no tempo livre que passamos a maior parte de nossos dias e é nele que devemos concentrar nosssas potencialidades”.

Cavallari diria: “o objetivo da empresa que criei nunca foi produzir dinheiro. A relação de troca de tempo por dinheiro que o mercado de trabalho proprõe não fecha. Tentei transformar em trabalho remunerado as atividades que me faziam feliz: ler livros, praticar esportes, viajar e estar em contato com a natureza. A saúde da minha empresa é medida não em números, mas no tempo livre que ela me possibilita”.