Dia 2

Quando o alemão Karl von Drais inventou a bicicleta, há mais de duzentos anos, à sua época nomeada “máquina de correr” ou simplesmente “velocípede”, certamente não imaginou o impacto que sua engenharia traria às gerações seguintes.

Dos saltos alucinantes sobre uma mountain bike modelo de entrada da Sundown nas pistas de skate e bmx no Parque dos Macaquinhos, às conduções para as intermináveis tardes de vôlei, nas quadras de areia deste mesmo tradicional espaço verde, bem no meio de Caxias.

À época, compartilhava a bicicleta com meu irmão. Na ausência de um, guidão para o outro. Compartilhávamos, também, a paixão pelo futebol, de infância e adolescência sempre conectadas por escolinhas, campeonatos escolares, gramados e quadras de futsal de Caxias do Sul afora. Chutamos alto nas expectativas, fomos driblados pelas ânsias futebolísticas e a bike fora, literalmente, escanteada.

I

Saí de Canela (cujo bairro era o Canelinha), após tomar um arrumadíssimo café da manhã oferecido pela anfitriã Rosi. Me permiti descansar bem e saí mais tarde neste dia, pois o trajeto pretendido no cronograma teria bem menos rodagem em comparação aos quase 80 km pedalados do dia anterior. De arrumações e papos sobre trechos e estradas para São Chico, o tempo correu brusco.

Desci as escadas da hospedaria com a bike e fui direto ao restaurante mais próximo, pois já eram horas de almoçar. A Rosi me acompanhou até a faixa. Dali, eu viveria o desconhecido sob a ótica ciclista, e ela as eternas novidades de recepcionar novos viajantes de todas as partes a qualquer momento.

14h23. Escolhi continuar pedalando por vias interioranas, de chão batido ou trechos asfálticos vicinais. A Rodovia Arnaldo Oppitz, de início asfaltada, se ofereceu como um belo escorregador que desse para uma cama de areia – no caso, de terra e cascalho. Dentre imponentes parques de diversão, restaurantes requintados e outros estabelecimentos exclusivistas, logo a floresta de mata atlântica passou a dominar o ambiente, redistribuindo harmonia e ar puro ao cicloviajante.

Como num truque rural qualquer, a área urbana foi cortinada para trás, metida em sua própria sanha opositora às matas intocadas. Num piscar e mais que desejado abrir de olhos, a paisagem campestre se insinuou com todos os atributos que detêm. Moradas rústicas de campo, bois, vacas leiteiras, ovelhas e galinhas soltas nos declives esverdeados, o tempo menos ligeiro, tampouco doutrinador.

De topos curvilíneos ou achatados, morros bem vestidos com adereços em diferentes tonalidades de verde, espécimes nativos saudáveis, ainda que invariavelmente à mercê do homem. Nos ensaios de penhascos, quedas d’água tonificavam os sopés. O sol insistente na rodovia Trezentos e Dez, mediante aglomerados de nuvens desformes, salpicou de luz e estima todo o caminho da Usina Hidrelétrica de Bugres até ao surpreendente encontro com uma curiosa e bela família de macacos bugios-ruivos.

A estrada de terra emoldurou-se em um trecho de paredões de rocha escavados, cercados de floresta. Numa parada apreciativa e fotográfica, ouvi ruídos nas árvores do lado direito da estrada. Alguns passos para trás, percebi mais remelexos de galhos e vi o primeiro bugio, de característica mais escura, por se tratar de um indivíduo jovem. Logo os demais se alvoroçaram com minha presença e passaram a perambular pelos galhos de outras árvores em volta.

Os bugios são primatas herbívoros nativos da mata atlântica e nordeste da Argentina. O tamanho dos adultos até impressiona, visto que podem chegar a pouco mais de 1 m. De membros tonificados, possuem uma espécie de ‘juba’ e a pelagem é vasta e marcadamente marrom-avermelhada.

Quando ameaçados, defecam na mão e jogam no seu opositor. Não foi o meu caso, já que munido apenas de celular e olhos lacrimosos e bem-aventurados, pude presenciá-los habilidosamente atravessando de um lado a outro da estrada através de um galho a cerca de 7 m do chão. Era um grupo em torno de oito indivíduos. Os grandes, adultos atentos e prevenidos. Os filhotes, trepados e grudados no meio do caminho, enfileirados a me observar com olhos ternos de criança. Uma troca de saudações genuína e respeitável.

Insuficiente, talvez, pois ao pedalar os primeiros metros adiante, os clamores dos poderosos roncos dos adultos tomou conta da redondeza, podendo ser ouvidos de muito mais longe, uma espécie de vaia ao intruso e potencialmente um aviso territorial. Dado o recado, gravei sua sonoridade cavernosa e hostil e prossegui meu pretenso e amigável rumo.

II

Poucos quilômetros de terra castanha, estreita e bem delineada pela frente e passei a presenciar aldeamentos cravados nas margens de uma represa de água, em meio à mata ciliar. Cruzei por uma dupla de rapazes e uma criança de colo, parei e os cumprimentei. Curioso, logo pedi a qual etnia eles pertenciam. Para minha surpresa, eram indígenas Guaranis, uma das mais representativas etnias indígenas das Américas.

Os jovens Igor e Aldir, que carregava o bebê Obiel, foram gentis e atenciosos com o forasteiro, cheio de curiosidades e perguntas. O livro da jornalista paranaense Rosana Bond, intitulado “História do Caminho de Peabiru – Descobertas e segredos da rota indígena que ligava o Atlântico ao Pacífico (Vol. 1)”, serviu de base, de forma que já tinha a noção de que a tribo historicamente tem por tratamento a mansidão. Também sabia que eles, sabiamente, não são de dar corda aos “juruás” (brancos).

Antes de avistar a placa de identificação da aldeia pregada num tronco de árvore, os rapazes já estavam soletrando a nomenclatura para mim: “Reserva Indígena Tekoá Yvyã Porã – Mbyá Guarani”. O Igor me explicou que seu significado consiste em “Aldeia Guarani Belas Montanhas”. Nada mais apropriado. Os guaranis têm por costume nomear os espaços de forma toponímica, ou seja, de acordo com a geografia local.

Não quis tomar muito de seu tempo, tampouco correr o risco de pegar noite pelo caminho. Registrei o telefone do Igor e parti cheio de encantamento por sobretudo perceber e vir a contatar tamanha nação milenar. Ao mesmo tempo, certa preocupação com o estado de sítio em que vivem naquele meio caminho que leva à usina hidrelétrica, há cerca de 2 anos. Instalados ao lado da represa de águas em um trecho relativamente próximo à divisa de Canela com São Francisco de Paula, com boa área de mata nativa, obtêm instalações baseadas em lonas e sem qualquer suporte sanitário ou alcance médico (dada sua proximidade com o meio urbano e todas suas implicações).

Os guaranis são migrantes natos, caminhantes indômitos (não nômades). Rosana Bond, em suas inúmeras entrevistas com variadas aldeias guaraníticas pelo país, captou que “o guarani tem seu território nas pernas”. Seja por alcance das interpretações xamânicas de seus líderes, expansões territoriais ou por perseguições históricas. Porém, sua forma de se reintegrar a determinados lugares só se dá por memória ancestral, de modo que o território pretendido já tenha sido ocupado por seus ancestrais em outros tempos. E eles sabem onde esses locais estão.

Bond, experiente e versada nos trejeitos mais sutis desse magnífico povo, destaca: “são um grupo guerreiro/conquistador, ceramista, possuidor de importantes conhecimentos nas áreas da astronomia, genética, botânica, anatomia (superior à da Europa católica quinhentista, que proibia a dissecação; os guaranis sabiam mais do corpo humano que o famoso Leonardo da Vinci, que abriu cadáveres às escondidas dos padres mas continuou com conceitos errados”.

Rosana diz, ainda, que “possuem um idioma elegante e rico, resistente à invasão europeia e atualmente praticado por mais de 130 mil indígenas e 6 milhões de paraguaios”.

Sua origem provável é a Amazônia, datada de mais de 3000 anos atrás (há quem diga que sejam andinos). De forma que migraram ao sul do continente ao longo de centenas de anos. Foram se fixando de acordo com suas crenças religiosas, baseadas nas instruções dos seus xamãs, advindas dos deuses. De tempos mais atuais para cá, o tronco brasileiro têm vivido no litoral sul ou em áreas próximas, já que sua bela e intensa relação com a natureza e suas divindades entende que a Terra sem Mal, o paraíso para os guaranis, se encontra ao leste, no nascente, em meio ao oceano Atlântico.

III

Ao evidenciar seu espanto por eu estar cruzando a serra gaúcha desde Caxias do Sul até o litoral sozinho e de bicicleta, os guaranis Igor e Aldir não pouparam expressões. Gravei no peito suas saudações e parti mais uma vez emocionado com o tamanho dos encontros que vinha tendo até então. Da barragem e seu solitário guarita gentil, Márcio, que compartilha dicas sobre a localidade e coloca os “estrangeiros” pela rota certa, até a casa de minha próxima “hospedeira”, um sem número de giros meditativos nos pedais.

Dali para São Chico faltavam 23 km. Além da barragem até ao alcance da bem asfaltada RS-235, 4 km de escalada íngreme pelo último trecho de terra num desvio pela propícia Estrada dos Bugres. Não por acaso, após surpreender e ser espantado por uma cobra d’água verde, animal comumente visto pelas bandas mais ao sul do Brasil, encontrei outra aldeia guarani e pude conversar com o Gerson, morador local.

De aspecto melhor estruturado, com espaços mais amplos e típicas construções de adobe e palha, a “Aldeia Indígena Mbyá Guarani Kurity” foi formada, segundo ele, há cerca de 4 anos. Vindos de Palmares do Sul, município situado no litoral sul gaúcho, às margens da Lagoa dos Patos e com vistas para o oceano. Gerson disse que são “cerca de 100 pessoas – incluindo as crianças”. E quanto ao significado de Kurity, ele me apontou para as árvores atrás de mim: “araucária”.

*

“Pedalar sem saber o que está por vir, nesse mantra impermanente e sonoro de corrente, catraca e coroas, traz à consciência o inevitável momento presente”. (do livro “Mashallah – do Ártico à Ásia de bicicleta”, do jornalista, cicloviajante e escritor Israel Coifman)

Ao chegar na rodovia, uma gangorra asfáltica de quase 20 km até a cidade pretendida. Sob o entardecer gelado e teatral de cerrações, adentrei a cidade fundada por tropeiros nestes campos de cima da serra. De altitudes tocando os 1000 m, possui extensa delimitação e seus campos de pequenas colinas, verdes planaltos, são de léguas sem fim, batendo nas dividas desde Caxias do Sul até os cânions de Cambará do Sul e a leste com o litoral. Por fim, a vista estreita e comprida do caminho até a hospedaria, charmosa casa de madeira localizada no terreno detrás de um estabelecimento em reforma.

Formada em direito, a gentil e comunicativa Aline, dona do pedaço, atualmente trabalha como agente de saúde, inclusive, prestando atendimento aos indígenas da região, como os Kaingangs e Xoclengues, tradicionais etnias da serra gaúcha. Seu entendimento, sabedoria e trato em relação às diferentes aldeias que atende é notável.

Cicloviajante, trilheira e guia de turismo engajada, compartilhou aventuras minimalistas e inspiradoras vividas ao lado de seu namorado, o porto-alegrense Mateus, professor de inglês e também guia turístico e cicloestradeiro. Juntos, disseminaram bueníssimas atenções e suportes dos mais variados caminhos da redondeza, que conhecem tão bem como os bonitos sonhos que cultivam.

*

Toda bagagem de mil e um rebentaços do clima sob palas incandescentes e sóis de arrasto acumulada que os antigos ‘gauchos’ tropeiros carregavam no lombo de cavalos no transporte de manadas, serviram de apetrecho para trinchar estes campos e nele fundar morada nos oitocentos. Tudo que os olhos viram e a memória tatuou no âmago estradeiro, serve de suprimento e alivia o peso dos alforjes do viajante, que montado no lombo metálico de sua bicicleta, percorre as mesmas cicatrizes de chão, talhadas e reimpressas pelo tempo e suas agruras.

Cronograma do dia: Canela/RS – São Francisco de Paula/RS – 43,94 km pedalados – 882 m acumulados de ganho de elevação

Mais além: O Censo do IBGE 2022/2023 e o povo brasileiro que se preze comemoram: indígenas tiveram um significativo crescimento de sua população, chegando a 1,7 milhão de pessoas, um aumento de 89% em relação ao Censo de 2010. Não bastasse, o escritor e ativista ambiental Ailton Krenak, da etnia Krenak, foi eleito para a Academia Brasileira de Letras, tornando-se, assim, o primeiro indígena brasileiro a conquistar tal feito.