Nacionalidades, música e história

Dia 21 – Agraciado com as ocorrências angelicais no caminho de Mercedes, me pus devidamente ancorado nas dependências do hostel, em Corrientes, capital. Devorei uma lata de atum com pães e daí em diante começaram as sucessões de acontecimentos que só ocorrem a viajantes em quartos compartilhados mundo afora.

Historiografia à vista, chamamé ao vivo

Nessa mesma noite, das boas sombras no pátio, surgiu o Andrés, que logo se identificou galego, historiador e professor de literatura. Instantes depois, apareceu o mexicano Emiliano, músico de rua. Mistura de informação, inquietude e muita história hispano-americana sobre a mesa do refeitório. O Andrés estava a preparar sua tese de doutorado no assunto, enquanto que o Emi, viajante dos séculos, sacava boas tiras de conhecimento. Do Brasil colonial às Malvinas, dos movimentos ultra nacionalistas atuais aos duvidosos heróis argentinos de outrora.

No outro dia, forçado por situações pessoais, vibrei por ter de ficar mais uma noite nessa simbólica cidade. À tarde, o Emiliano desdobrou seu violão de fôlego, ofereceu-me o cajón e juntos iniciamos o baile vespertino do hostel. Ele circula o mundo todo com seu equipamento, já esteve no Brasil e adora dedilhar seu talento por Porto Alegre. Aliás, talento é apelido.

Aos poucos, o pessoal veio chegando. O Humberto, proprietário, trouxe o mate e seu violão. Mostrou jeito, juntou-se aos ritmos chamameceros e latinos, e a tarde se expandiu, escorada às gotas de suor que o sol extraia de cada um. Quanta musicalidade, precisão e ganas sonoras. Lavei a alma, já há semanas sem ensaiar com os guris de Caxias. O Emiliano estava de regresso à Córdoba, seu atual endereço, mas não nos despedimos. Espero que os eventos programados por nós por terrenos gaúchos, nos reúna novamente.

Século XX, cassino e suco de pomelo

Me larguei com o professor Andrés para o centro. Ora falava espanhol, ora português lusitano. Na Galícia, região localizada no noroeste da Espanha, os dois idiomas são oficiais. Dividimos um cesto na lavanderia e seguimos calçada. Enquanto a roupa era mergulhada no maquinário, o professor torceu minhas ideias com revelações de fatos que me aceleraram os batimentos.

Seu bisavô, Hindenburg, general alemão na época da Primeira Guerra, reconhecido em todo país por seus feitos como combatente, foi eleito, em 1926, presidente da Alemanha, aos 80 anos de idade, e reeleito para o cargo, mais tarde, até 1934. Antes disso, em 1933, foi forçado a nomear Hitler como Chanceler – os mesmos se desprezavam. Em 1934, Hindenburg morreu e Hitler tomou plenos poderes na Alemanha, instalando, a partir daí, toda tragédia e caos inimagináveis que conhecemos. Encurtando palavras, o bisavô do Andrés foi o último governante da Alemanha antes da psicopatia nazista. Ao menos para mim, um caso para entortar a mente.

Passadas as anestesias dos fatos, fomos à Costanera, perambular às margens do interminável Rio Paraná. Provei os ótimos sabores do suco de pomelo, presenciei um dos pores do sol mais incríveis da vida e embarcamos em um táxi para buscar as roupas, antes do término do expediente. Ainda nesta noite, banhados, pulamos de volta às ruas de Corrientes para procurar janta. Dos fados e cantorias de Andrés, das boas conversas e poesias. Dos convites a cruzarmos juntos algum dos caminhos de Santiago de Compostela, os quais sabe de cor. Ainda faremos essa escala, sábio e gentil professor de Buenos Aires. Ainda tivemos tempo de percorrer os salões iluminados de um cassino, múltiplo em cores e gentes concentradas em suas jogatinas.

Revelações no bolso, bagagem acumulada

Corrientes, capital, terra do Chamamé, de Don Lúcio Yanel, meu estimado vizinho de bairro. Dos meus outros queridos e grandiosos vizinhos de tantos anos, os caxienses Yangos, que já são figuras certeiras do Festival cancioneiro da Argentina.

Saudação especial ao Georg, alemão, estudante de advocacia, que me apresentou o livro do argentino Emilio Scotto, moto viajante planetário. Tratamos de nos rever em Assunción, capital do Paraguai. Contudo, seguimos caminhos paralelos até o sul catarinense. Sempre próximos e distantes, resguardando ventos para cada um.

Agradecido, Argentina de múltiplas facetas. De longas estradas e ventanias. De gente acolhedora e gentil. Da terra do chamamé, o destino se dará mais acima. Cruzar as províncias do Chaco e Formosa e adentrar os terrenos do Paraguai, meu terceiro país do circuito.