Dia 1

No verão de 2019, percorri alguns países da América do Sul com uma moto de baixa cilindrada, em um formato que chamei de motomochilão, a viajar minimalista, me hospedando na maioria das vezes em quartos compartilhados e conhecendo, assim, viajantes do mundo todo e até mesmo pernoitando na casa de pessoas que tive o privilégio de conhecer pelo caminho, vivenciando sua cultura de forma mais ampla e intimista.

Na pele, os sentidos ampliados, tatuados na caixa de memórias e revisitados no imprevisível clima, na natureza pulsante e na generosidade das gentes – essência de toda proposta de imersão no grande barco da diversidade. Acolher e se deixar ser acolhido. A boa e velha bandeira do aprender e do compartilhar.

Anos antes, em 2017, participei de uma palestra do casal de viajantes do projeto Viajo Logo Existo, o que de certa forma “oficializou” a gana caminhante, de conhecer o mundo com seus mais diversos povos e culturas. Antes de adquirir a moto para tal feito, a memória afetiva e polivalente de percorrer estradas com uma bicicleta já se alastrava em minhas veias.

Entretanto, a bicicleta voltou à minha rotina apenas em meio à pandemia (e aos pandemônios negacionistas), como forma de abrandar as angústias da clausura e o distanciamento dos amigos e acontecimentos mais intimistas. Meu irmão caçula, Anderson, se antecipou ao movimento ciclístico e serviu de grande motivação.

A cidade, com efeito, passou a ser vista de outra maneira, dado a dinâmica de movimento, contemplação e meditação que a bicicleta como instrumento esportivo e veículo de transporte proporciona. Como forma de driblar as ‘lógicas’ capitalistas e melhor representar os chamados da Terra contra as terríveis profecias do antropocentrismo, a bicicleta ecoa ainda mais libertária.

A título de referências de viagem, a literatura, os filmes e documentários que abordarei aqui são vastos e vieram a alicerçar toda a sanha rotineira em torno da bici, e que fatalmente culminaram em minha peregrinação em relação a tão incrível veículo. De maneira que, enfim, o sonho vingou em realidade.

I

Consequências: quis a bússola da sina aventureira que o primeiro destino cicloviajante fosse a cidade serrana de Canela, terra natal de minha avó materna, dona Célia (diz minha mãe ser ela o elo indígena que nos conecta aos ancestrais originários deste Brasil – a estudar estou), a única do quarteto de bons velhinhos que não tive a honra de guardar recordações. O tempo, às vezes, é cascudo. Seja como for, Caxias do Sul como base, o mundo como quintal.

Do roteiro pretendido, intitulei “Projeto Tapejara”, referência direta de minhas atuais leituras sobre a cultura do povo Tupi-Guarani. Na sua língua, ‘Tape’ é caminho, e ‘Jara’ é senhor. Ou seja, “Senhor dos Caminhos”. Uma espécie de mantra: todos podemos ser senhoras ou senhores de nossa própria jornada.

E sair mundo afora de bicicleta captura, de fato, esse espírito de enfrentar o desconhecido, desbravar-se, explorar a natureza com mais minúcia e se conectar com as pessoas de forma mais genuína – já que a cidade grande não anda lá muito afeita a intimidades, prescrita em bolhas cada vez mais consolidadas.

Escolhi o dia vinte de setembro para a partida, coincidentemente o dia do gaúcho, porém longe de ser afeito aos bairrismos do Rio Grande do Sul e sua farsa farroupilha. Contudo, celebro, sim, os indígenas, os homens do campo, o povo negro e as mulheres, feitores de toda saga possível.

*

Após o café ansiado e os últimos toques e verificações, a manhã ensolarada que driblava todas as expectativas de chuva me chamava. Não que a aguaria celeste fosse entrave, pelo contrário, pois também estava igualmente preparado para os aguaceiros.

11h04. Nos primeiros quilômetros, o corpo por aquecer-se, de forma que a bicicleta carregada de bolsas no melhor estilo bikepacking e mochila cheia, proporcionava um novo tipo de pilotagem. No curto trecho de BR-116, encontrei o Edenilson, imprimindo pedaladas no ritmo de quem está por se recuperar das lesões no joelho.

Na bifurcação, trocamos saudações e ele me desejou boa viagem. Assim queria. Nessa toada, o certeiro lema do cicloaventureiro, escritor e um dos maiores pensadores brasileiros, Guilherme Cavallari, sempre me serviu como guia: “meu compromisso é com o esforço”. Já que, segundo ele, “todo bom aventureiro tem bom senso e sabe a hora de girar nos calcanhares e voltar pra casa”, desmistificando o ideal torpe de sucesso.

Minha cidade natal, Caxias do Sul, é forjada em geografia montanhosa, o que proporciona percursos variados, raramente monótonos. Há sempre um recorte de aclives e declives, interiores intactos e sua gente pacata e trabalhadora. Verdes longilíneos, vales profundos, cascatas, grutas e riachos e variadas capelas do século 19.

O olhar marcado pelas ações do clima e do tempo das velhas e velhos, agricultores, precursores de seu tempo, de ascendência italiana, que cultivam e mantêm suas tradições em cada ponto cardeal desse antigo território índio. Em outros tempos chamado de “Campo dos Bugres”, foram cedidos, então, ao povoamento da localidade em eras imperiais, no longínquo ano de 1875, em detrimento dos povos aqui presentes.

Dessa maneira, quanto aos nossos números eleitorais em tempos de fake news e discursos de ódio, reflexos do cerne ‘branco’, meritocrático e indiferente às reivindicações populares de nosso país, cruelmente embasado no massacre indígena e na abominável cultura escravagista – farto e triste contrassenso.

A altitudes próximas dos 1000 m, famigerado – e duro – é o frio, a neblina e por ventura a neve que permeia nossos lares, ruas e o vasto cultivo hortifrutigranjeiro, que fornece mantimentos não só para nossa região, mas para o país inteiro – mãos calejadas, por certo, detêm seu valor.

Vislumbrar os cerros e seus dorsos verdes intocados, do alto, é meditativo. De baixo, espantosamente monumental, seriamente reflexivo. Num ensaio de terra e insistência asfáltica, montanhas seminuas e concreto urbano, do sibilar da corrente à tração dos pedais, comumente emocionado, não demorei muito a chegar à comunidade de Vila Oliva, distrito do interior do interior da cidade, às dividas com a massificada Gramado e a não menos turística Canela.

O Ricardo e seu Bolicho do Cadão, tradicional e praticamente único ponto ciclístico até Canela, prontamente atendeu minhas expectativas famintas, já que eram passadas duas horas da tarde e 44 quilômetros pedalados sob sol a pino, num trecho predominante de asfalto e considerável ganho de elevação.

A cativante cozinheira Josi desembrulhou a comilança e rapidamente reacendeu o fogo nas panelas do paradouro, que de troco serviram uma buena à la minuta vegetariana. Os olhos azuis do gato Benjamin desfilavam soltos, mesmo a captar um prato sem bife na lanchonete vazia. Dali em diante, muito chão batido e vales íngremes, ingredientes de toda boa travessia que se preze.

II

Tobogã serrano abaixo, quanto mais próximo do grande rio Caí, senhor da bacia hidrográfica que abastece boa parte da serra gaúcha, e, de forma alarmante, classificado como um dos dez rios mais poluídos do Brasil, mais cascatas despencando do topo de encharcadas montanhas, alimentando as águas corrediças lá de baixo e nutrindo a memória pulsante do espectador.

Mais um pedaço de serra em direção à ponte do Raposo e dei de cara com a imponente e quase centenária estrutura de ferro, trazida da Alemanha em 1936, comum em conectar comunidades da serra gaúcha, com seu traçado de passagem feito de madeira, igualmente antiga e maleável.

Em breve, será “aposentada” pelas novas vias de acesso ao futuro aeroporto regional da serra, em Vila Oliva, visto a sinuosidade – porém belíssima visão da região das Hortênsias que o trajeto proporciona. A nova ponte fará parte das vindouras estruturas viárias para o futuro aeroporto regional da serra, neste distrito.

Suas frestas paralelas à passagem são como ranhuras de um grande felino, a oferecer visão às alturas que despencam no Caí, que detém seu nome a partir dos tupi-guarani, e que significa “Caminho do Rio” – dose gratuita de apreensão ao viajante temeroso, tanto de água quanto de altura em demasia.

Confesso que meus alertas se insinuaram, pois titubeei para atravessar a ponte (a vazão de águas que apreendia o Rio Grande do Sul, movida a ciclones e tormentas de desastrosos resultados tanto vistos na TV cobravam seu efeito). Do outro lado, um ziguezague em ângulo de escalada para subir o trecho final em direção à Canela.

São muitos os pequenos mundos contidos em cada paragem fotográfica, para lanchar ou até mesmo descansar. Há lugarejos escondidos no tempo, guardados num sem anos de outrora, crivados de belezas permanentes e possibilidades pontuais, como a presença da fauna ou a vazão de águas em diferentes e inúmeros córregos mata e propriedades rurais adentro. Pontes e passagens fílmicas, ar puro, bucólica sala de estar ao viajante atento.

*

No levantar da turística noite canelense, homem e bicicleta, após percorrer alguns quilômetros à deriva, finalmente encontram a carinhosa e sincronizada anfitriã Rosi, dona de um apartamento que fica em cima de uma academia.

Multitarefas, atualmente se destaca como motorista de aplicativo, conhecedora de cada canto da cidade que é, e das possibilidades que um polo de turismo tem a oferecer – e a acirrar, dado tamanho trânsito de gentes que os holofotes atraem e que passam a barrar os próprios moradores em sua locomoção. Afinal, é disso mesmo que a cidade vive. Como complemento às finanças, ela aluga um quarto extra e oferece tratamento de mãe.

Curiosamente, seus filhos têm o mesmo sobrenome que eu porto: Cardoso. Provido de minha mãe, dona Adriana, vindo de meu avô, seu João, nascido na vizinha Gramado e do qual estou munido de encontro à sua origem – possivelmente portuguesa. Juntos, tratamos de angariar informações e destravar tal mistério de ‘Cardosos’ tão próximos e ao mesmo tempo desconhecidos.

Sonidos que pulsam lá embaixo, exercícios de uma boa prosa entre cozinha e sofá aqui em cima; cafés e dicas da dona Rosi de onde encontrar um jantar justo em pleno feriado regional. Repetida uma saborosa à la minuta vegetariana em uma lanchonete a poucas quadras da hospedagem, era hora de pôr o caderno a postos para as anotações e arrumar a cama para dormir.

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Nesse sobe e desce de vales e montanhas, descidas e ascensões de escadas e extravagantes chamegos de chuveiro, ânimos reivindicados para seguir tomando o mundo de peito aberto, sob traçados e sensações que só uma bicicleta pode proporcionar.

“O fato de não existirem mais roteiros originais em nosso planeta não impede que a bicicleta nos proporcione grandes descobertas, pois a cadência das pedaladas funciona como um mantra, que nos induz à introspecção e nos leva a lugares que realmente nunca foram visitados, as profundezas de nosso próprio ser”.

(do livro ‘Entre Salares e Desertos, Montanhas e Vulcões – do Altiplano Andino ao Atacama em Bicicleta’, de Antonio Olinto e Rafaela Asprino, cicloviajantes, escritores e disseminadores de sonhos)

Cronograma do dia: Caxias do Sul/RS – Canela/RS – 76,91 km pedalados – 1.691 m acumulados de ganho de elevação