Antídotos: Trilhas

A inquieta Robyn Davidson, belamente interpretada por Mia Wasikowska, decide atravessar o centro-oeste (Outback) australiano a pé, em direção ao oceano Índico. A região é desértica e hinóspita, contendo mais de 3.000 km de clima hostil e selvagem. São extensões que não dão trégua às poucas pessoas que ali vivem. Diríamos, portanto: tarefa incabível?

“Quando me perguntam o porquê, eu respondo ‘e por que não?'”

Quando a odisséia já é árdua só de pensar, é aí que Robyn nos surpeende com sua pretensa companhia de viagem. Ela considera treinar e levar camelos para carregar sua bagagem.

Originalmente munida de sua mascote, a cachorra Diggity, Robyn chega ao ponto inicial de sua jornada: a cidade de Alice Springs. Disposta a arrecadar recursos e se ambientar com a região, ela arranja trabalhos e busca contatos para se achegar às lidas com os animais.

Descobre uma fazenda em que tem a chance de trocar seus oito meses de serviços por dois camelos. Na peleia da labuta, ela passa a ensinar os camelos a carregar sua carga. No entanto, além do mais, é colocada à prova pelas manias machistas e frias do proprietário.

Robyn faz jus ao tipo hermitão: avessa à gente, a burburinhos e à superficialidade do ‘modo manada de viver a vida’ contemporânea. Se vira em qualquer galpão, dorme em qualquer ruína, acorda para qualquer empreitada. No fim de sua estadia na fazenda onde aprende a dureza que é lidar com os camelos em tal deserto de calor, depara-se com a negação de seu pagamento: não, não irá levar os bichos consigo. É enganada e demitida, sem nada.

Áridos caminhos. Ducha de água viva

Ao prosseguir a sina viajante e de autoexílio, Robyn consegue um emprego com um tradicional cameleiro afegão. Em sua partida, ganha um animal por metade do salário, arrecada outro camelo através de barganha, e, prestes a iniciar o rumo, é contemplada com um patrocínio da revista de aventura Nacional Geographic. Contudo, com a condição de ser acompanhada por um fotógrafo para alguns cliques. Monta tudo e sai.

Sai em direção a si mesma, aos contínuos flashbacks que o filme nos oferece, providenciando pistas de seu passado nada sutil, de intermitências familiares e ausências de colos afetivos. De implacáveis sóis a terrenos ressecados, sempre paralela à parceria da cadela Diggity. Assim, antes de dar a partida, Robyn então descobre que sua camela está prenha. Mais um membro para a família e ânimo aceso para o primeiro dia dos próximos seis meses de trajeto.

De trecho em trecho, mensalmente ela recebe a indesejável visita do fotógrafo para os devidos registros à revista, pequenos incômodos na solitude da viajante. Aos poucos, a cada encontro de intromissão e fotos forçadas, Robyn fica menos dura com ele. Dentro do conflito, é no homem das lentes que ela encontra resquício de raiz e atenção.

Diante de vilarejos, todos já a reconhecem como ‘a moça dos camelos’. Junto dos povos aborígenes, é tragada à sua afeição e por certo admira suas tradições e modo de vida simples. Alguns são mais fechados e rigorosos com a presença estrangeira, outros propõem-se a auxiliá-la em sua travessia. Ao lado de um ancião nativo, Robyn percorre caminhos sagrados junto de seus animais, caminhantes por excelência, numa mescla de pés e lombos.

Aventura: braço hereditário

Há desencontros com a bússola, desacertos com o coração e tatuagens solares em sua pele. Acometimentos com seu mantimento e diários acampamentos selvagens munidos de tempestades de areia, falta de água e serpentes. Não bastasse, Robyn ainda tem tempo de sofrer um duro percalço com sua fiel mascote.

Na mirada para o oceano, em meio das trilhas que formata com seus pés calejados, é recebida por gentes pacatas e dóceis, refúgios ligeiros e reconfortantes. De trilha sonora atraente, somos capturados pela fascinante história de vida da personagem. Hipnotizados por suas pegadas na areia incandescente e abduzidos pelo tamanho de sua valentia e perseverança para atingir a jornada de sua vida.

A bagagem vem de família, mais precisamente do seu pai, quem cruzou o deserto do Kalahari, em 1935, na África Meridional. Contudo, Robyn é desde sempre zombada e colocada como desdeirada até por pessoas próximas de si. Porém, ela tem o coração enraizado com o sabor do mato e da solidão, da abnegação e da irreverência.

Tracks é capaz de salientar as dificuldades do ser mulher e viajante solitária. De adentrar caminhos antes só de homens e cruzar impossibilidades estabelecidas. De jogar as âncoras do sexismo para os infernos e traduzir o espírito explorador e vibrante que só alguém que não queira viver o óbvio e consumir o que lhe é imposto é capaz de fazer. É, assim mesmo, num só bueno fôlego, como o potente filme da Robyn, sua cachorra e seus camelos.

Nota: 5/5