Nas beiras de um caldeirão de sol

Dia 23 – Aqui começa um recuo não premeditado, não querido. Todavia um atalho prazeroso e quente, muito quente. Minhas ideias originais se davam em cruzar a Argentina até o Chile, e, dali, subir à Bolívia, para depois regressar ao Brasil.

Falha de cálculos, subestimada rotina

Gastos imprevistos no decorrer do caminho me fizeram cortar rotas, recuar estradas. Um aperto na alma, mas inerente. Talvez eu tenha feito um orçamento limitado para sair logo de casa, para cumprir com aquilo que pressionava minhas ânsias. Porém as necessidades mais básicas falaram mais alto, como custo superior com alimentação, algumas hospedagens, pedágios e estacionamentos, sem contar a mão de obra mecânica preventiva, que optei por fazer (na maior parte) em oficinas.

A partir de Buenos Aires, me anunciei subida ao Paraguai. País este não listado para o circuito original por causa de sua localização fora do círculo previsto, que abarcava outros países. O alívio é que o seguro obrigatório incluía os irmãos guaranis. Paraguai, aquele que contraria a todos, e me recebe com brasas celestes. Percorrer suas estradas foi como perambular constantemente pelas bordas de um caldeirão fervente. Ao menos me alimentei do seu conteúdo, renovando-me com suas energias e refazendo fôlegos para os asfaltos seguintes.

Vai um tererê aí?

Passei pela confusa aduana e logo firmei estadia em Assunción, capital. De cara, conheci o paulista Leonel, já em fase de regresso de sua longa aventura e perrengues por países da América do Sul. Falei a ele que suas histórias surreais renderiam um bom livro. Enquanto isso, ele se atualizava nas redes sociais. À noite, fomos ao centro e buscamos deliciosas empanadas. Em uma percorrida relativamente rápida, nos deparamos com nuances coletivas mais evidentes quanto aos outros dois países que visitei em meus giros ciclísticos – ao menos mais exposta. Detalhes à parte, Assunción tem uma boa estrutura, arquitetura que remete a tempos antigos e um trânsito funcional.

No retorno à hospedagem, provei pela primeira vez o tererê, bebida semelhante ao chimarrão/mate, que ao invés de água quente, leva líquido gelado. Inusitado, essa é a definição de quem está imensamente acostumado ao chima gauchesco, com água “pelando”, faça chuva, faça sol.

Desgoverno e travessia. Brasil à vista

No outro dia, abaixo de calores excessivos, pós cuidados da querida e polivalente anfitriã do hostel, a Sílvia, me larguei rumo à Foz do Iguaçu, meu primeiro destino no estado do Paraná e retorno ao Brasil. No anoitecer, ao percorrer o centro de Ciudad del Este, famosa por seu comércio ostensivo, uma carreta desgovernada saiu das escuridões periféricas e atravessou bem em minha frente, só parando no canteiro central, após derrubar poste e causar estragos. Desviei o que pude para o acostamento.

Um livramento dos bons, pois eu era o último veículo anterior ao caminhão. Com o motorista me pareceu tudo em ordem, apesar das grandes avarias ao veículo atravessado na pista. Aliviado e emocionado, desci alamedas para o meu Brasil. Aliás, é sempre um trabalhão para o reservatório de lágrimas nestas horas. Normalmente as partidas, ou situações limite como essa, carregam o peito de sensibilidade, causando esforços oculares em conter as goteiras decorrentes das intensidades estradeiras. Vida de viajante, de nômade, de motociclista solo. Quantas euforias.